quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Os Coxos Dançam Sozinhos

Ao começar a ler Os Coxos Dançam Sozinhos (livro de José Prata) foi inevitável sentir uma certa suspeita se iria gostar ou não dessa leitura. Eu explico: ler uma história que se passa em Lisboa, sobre um detetive ficcional de policia, obviamente português (piadas a parte), e que não é apenas o detetive encarregado pelo crime, mas, também, o próprio autor desses crimes, me pareceu um tanto insólito.

Para minha sorte eu estava enganado. No entanto, a pesar de eu ter grandes amigos portugueses de tipos e aparências diversas, foi um tanto esquisito ao iniciar o livro, confesso, me livrar do estereótipo do português que temos aqui no Brasil, como aquele homenzinho gordinho e baixinho, usando um bigodão e avental. Essa descrição pobre que eu tinha dos patrícios entrou em conflito com as primeiras descrições do protagonista, como sendo um homem de músculos e com uma personalidade que lembra... mais ou menos... a do detetive Noir. Talvez essa dificuldade inicial de desconstruir um estereótipo do homem português tenha sido pela relação direta entre o livro (uma ficção) e meu imaginário, que trafegam em ruas paralelas as da minha visão sobre o “mundo real”. Em fim... vamos ao livro.

Essa é uma história contada pelo próprio protagonista, que é o inspetor Porto Brandão, responsável por descobrir quem está assassinando velhas senhoras gordas e loiras, a pontapé. Sendo que é ele próprio quem comete esses crimes, mas mascara a cena do crime levando as suspeitas para um grupo de negros chamados de “Gangue do Nike”, porque deixavam rastros de tênis nas poças de sangue. Lembro que suas descrições da forma como as vítimas eram encontradas são recheadas de piadinhas chistosas e irônicas. Logo nas primeiras linhas nos deparamos com a voz do protagonista: “Estou no quarto e não estou sozinho. À minha frente, deitada ao comprido, de barriga para baixo, está a velha que matei hoje de manhã. Bem morta, nua de todo, as banhas esparramadas pela alcatifa. Um mimo” (p. 13).

De fato, ele é uma personagem que vai cativando aos poucos por conta de sua forma irônica e chistosa de encarar as piores situações, como lidar com um tiro que levou na perna, por exemplo. Talvez aí esteja o ponto mais forte desse livro, a personalidade fria e ao mesmo tempo bem humorada do protagonista que, ao longo de uma narrativa entrecortada com os flashbacks da própria infância, vai mostrando que existe algo de errado, ou, pelo menos, esquisito, na sua psiquê. Esse detetive/vilão, no entanto, não está só. Depois da terceira vítima, outro assassino passa a compor a cena do crime, como que completando o trabalho deixado por Brandão. É aí que a história ganha um ar de suspense e mistério, típicos de uma boa história policial, mas com um toque contemporâneo e bem amarrado: a imprevisibilidade do por vir.

Curiosamente, não são as pistas deixadas ao longo da história principal, mas nos flashbacks, cuidadosamente dosados, que vamos percebendo aos poucos não só quem é realmente o inspetor Brandão, mas porque ele comete os crimes (um vínculo patológico ligado a um grande trauma) e quem é seu rival. Aliás, ao descrever os métodos usados pelo seu antagonista, percebemos o refinamento dessa personalidade perversa e irônica do Brandão, quando ele pensa “não lembro de ter costurado boca nenhuma – embora a idéia não seja isenta de poesia”(p. 14), ou, “Admito porém que o espécime estendido a minha frente era dos melhores, bem nutrido, palmas para o sacaninha [o antagonista]. Os pontapés foram científicos, o corte na jugular também. Agora, que reparo nisso, a incisão é perfeita, muito melhor do que as minhas. Vêm-me lágrimas aos olhos” (p. 51).

Os Coxos Dançam Sozinhos pode ser considerada uma história policial contemporânea por conta de seu desfecho em aberto, o crime foi solucionado, mas o verdadeiro enigma – a personalidade de Brandão – ainda está por se resolver, o que indica que as coisas não acabam por aí, se é que há cura para as patologias desse nível sem uma boa análise. Também há a narrativa fragmentada que permeia a história principal, sugerindo um lugar obscuro na mente do protagonista. Por fim, é possível perceber as grandes referências que a obra faz ao gênero policial estadunidense, como as camisas t-shirt, o blusão e óculos pretos e o ar “durão” do inspetor, que parecem muito mais uma forma paródica e irônica, do que uma mera relação com a produção estadunidense desse gênero. Quer se divertir? Então leia o José Prata.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

A insustentável busca pelo prazer

De uma forma bem ampla, erotismo e pornografia poderiam ser quase sinônimos. Onde será que habitam suas fronteiras? Tentar determinar a diferença entre erotismo e pornografia pode nos levar a um caminho tão dúbio (se não delicado) quanto afirmar que nos limites do prazer está a necessidade, ou vice versa. O que leva a outra pergunta: onde termina o prazer e começa a necessidade? Em algumas situações seus limites são tão turvos que, aparentemente, não há nada que nos sinalize com precisão até onde podemos ir ou onde passamos de um para o outro. Ou, para citar Foucault:
"[Não há] Nada, também, que se assemelhe ao cuidado – tão característico da questão da carne ou da sexualidade – em revelar sob o inofensivo ou o inocente a presença insidiosa de uma potência de limites incertos e múltiplas máscaras (1984, p.38)".
Essas questões se agravam ainda mais quando pensamos nelas em um contexto urbano, nas relações desoladas e caóticas nos grandes centros urbanos, onde a solidão e o individualismo são protagonistas em um enredo envolvendo a busca insaciável de uma completude utópica. Uma busca que pode iniciar-se desde o voyeurismo incitado pela presença da menina no apartamento do outro lado da rua, sentada em seu sofá, usando mini-saia e mini-blusa, até a oferta abundante de sexo barato nas ruas da cidade, ou no sexo filantrópico entre velhos casais. Talvez, por essa razão, seja mais fácil começar essa monografia pela pornografia (tendo o prazer e a necessidade como referências), e, então, tentar encontrar o que pode distingui-la do erotismo.
É nesse sentido que sou levado às obras literárias de Rubem Fonseca e suas histórias de sexo e violência. Começarei com as palavras de uma pesquisadora da Unicamp sobre esse autor, Fernanda Cardoso, que publicou um artigo on-line intitulado Rubem Fonseca: violento, erótico e, sobretudo, solitário, onde ela afirma que:
"A abundância de possibilidades eróticas oferecidas pelas cidades dá a suas personagens a obsessão sexual como única alternativa ao vazio da existência, como se na satisfação física do desejo residisse a última certeza de que ainda se está vivo (2009)".
É nessa forma obsessiva de praticar o sexo como fuga, ou razão para viver, que pode estar o ponto de partida para começarmos a perceber a pornografia não como um desvio doentio, mas como a tentativa de uma pessoa encontrar a si mesma em meio a outras possibilidades de busca. Sendo assim, tudo que nos levar a esse caminho, na perspectiva da pornografia, pode ser válido.
Daí os diversos exemplos de práticas “não convencionais”, ou seja, tudo aquilo que a sociedade vê como amoral, mas que muitos, no fim, acabam fazendo porque seguem aos chamados do próprio prazer, ou porque simplesmente não distinguem muito bem os limites entre o permitido e o proibido, ou porque perpetuam velhas práticas de seus antepassados.
"Em todo caso, nada que se assemelhasse às longas listas de atos possíveis que serão encontrados nos penitenciais, nos manuais de confissão ou nos livros de psicopatologia; nenhum quadro que sirva para definir o legítimo, o permitido, ou o normal, e a descrever a vasta família dos gestos proibidos (FOUCAULT, 1984, p. 38)".
Nessa citação, Foucault se refere a falta de testemunho histórico ou reflexão prática dos gregos sobre o que eles entendiam a respeito da aphrodisia, “as obras”, “os atos de Afrodite”, segundo Suda e Hesíquio[1]; o que é compreensivo, já que se trata da deusa da beleza, arquétipo da sexualidade e sensualidade, e que, portanto, deve ter deixado os grandes pensadores ocidentais confusos ao tentarem racionalizar uma das coisas que temos de mais instintivo: o prazer; embora, segundo Foucault, não se tratava de confusão, mas de uma reserva em relação a expressão, que não fosse artística, dos atos sexuais. Essa citação acima se encaixa, também, na difícil busca de uma definição aos desvios sexuais, provocados pela sedução e pela sexualidade.
É preciso, porém, perceber que, para não ser um ato “doentio”, a busca pelo prazer exige o consenso de quem está envolvido/a. No entanto, isso nem sempre parece claro, como podemos perceber no conto O cobrador (1979)[2], onde o protagonista narra uma de suas investidas contra a sociedade que o deve: ele invade um apartamento se fazendo passar por um encanador (simbólica profissão), imobiliza a empregada e estupra a patroa, descrevendo, com um prazer perverso, todo o processo em detalhes. Ao final ele diz: “como já não tinha medo de mim, ou porque tinha medo de mim, gozou primeiro que eu” (RUBEM FONSECA, 1994, p. 498).
A pesar da barbárie que é um estupro, o que parecia brutal se torna, nesse caso, um elemento fetichizante, ou seja, o medo aparece aqui como um elemento necessário para despertar prazeres ocultos. Isso não quer dizer necessariamente que a vítima desejasse isso, mas que ela tenha percebido que pode haver outras formas de sentir prazer sexual, quer seja pela perda do domínio sobre o outro, quer seja pela brutalidade em si. Assim, podemos apontar para dois pontos importantes nesse ato: a ação dominante do perverso e a ação submissa da vítima, ambas como canais de prazer e busca pela satisfação.
Outra observação pode ser feita a respeito das relações sociais envolvidas nessa questão acima. Através de seu protagonista, Rubem Fonseca subverte as relações hegemônicas de poder ao colocar uma pessoa à margem da sociedade, com prazeres brutos e grotescos, irrompendo um espaço burguês (o apartamento da vítima) e tomando o controle do corpo dessa mulher que representa a classe dominante. Essa é também uma forma que o protagonista encontrou, além de assassinar casais ricos, para se rebelar contra a opressão dessa cidade controlada pelos interesses de uma classe burguesa que, para ele, é a responsável por seu infortúnio, e que agora ele vem cobrar o que ela o deve.
Desse modo, podemos perceber que por um lado existe o instinto, o desejo... as pulsões; por outro, a sociedade e todas as suas leis que imobilizam, regularizam, engessam essas pulsões. Como Foucault descreve as reações ao desejo liberto, em relação a tradição cristã, “[...] em nenhum lugar são expressas, como serão na espiritualidade cristã, as precauções necessárias a fim de impedir que o desejo se introduza sub-repticiamente na alma, ou a fim de desalojar seus vestígios secretos” (1984, p.39). É justamente em oposição a isso que surge os rompimentos dessas barreiras de contensão, como diques com pequenas infiltrações e fissuras que ameaçam sua estrutura, oposições essas que são encarnadas na personagem protagonista de O cobrador.
O uso de elementos narrativos, como uma personagem perversa que resolve cobrar da sociedade tudo o que lhe foi subtraído ou infligido, é um bom exemplo de como a literatura pode, de forma surpreendente, trazer à tona questões da realidade, incluindo as angustias causadas pela privação ou controle do sexo. De fato, Rubem Fonseca desenvolveu uma forma de produção literária que, de certo modo, parece ter estabelecido uma nova corrente na literatura brasileira contemporânea, apontada por Alfredo Bosi (em 1975) como brutalista. Em O cobrador, por exemplo, como em uma série de outros contos, Fonseca desenvolve sua narrativa de tal modo que desenvolvem-se personagens narradores de suas próprias histórias; protagonistas que parecem estar narrando para si mesmos seus próprios percalços, ou descrevendo a própria satisfação em desvelar um frágil estado de moral e civilidade social.

Por trás de uma produção literária poderemos, então, encontrar uma crítica a uma sociedade opressora do indivíduo e reguladora de seus prazeres; tudo sob o disfarce da narrativa de um crime cometido contra um casal que freqüentava lugares caros, ou através de um estupro. De fato, o que vem a tona, em suas obras, é o relato do cotidiano desumano das grandes cidades e, em convergência com isso, a exteriorização dos conflitos e dramas humanos despertos pela subversão da ordem. Rubem Fonseca nos apresenta, portanto, seu modo de narrar situações que são, claro, fictícias, mas que poderiam muito bem ser consideradas obras do cotidiano; algo que certamente acontece em algum beco ou rua das grandes cidades congestionadas por rostos anônimos.

[1] C.f. O uso dos prazeres, Michel Foucault (ver referências)
[2] Para essa análise usarei a edição de 1994.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

O efêmero e seu duplo

Começar esse blog pelo fim, ou seja, falando sobre morte seria quase um mal pressagio, se não fosse pelo momento histórico e triste: morre Michael Jackson. Não... não sou um fã, mas estou surpreso em perceber que, apesar de ser uma pessoa... digo.... um ser humano, a morte não parecia lhe caber. Como uma imagem morre? Como um produto da mídia, um ser virtual, pode conhecer a morte? Ele respirava e tinha um coração de verdade! Isso não parecia real.
Na verdade, não foi O Michael Jackson, mas uma era... um momento pop histórico com toda sua memória afetiva que dobrou a esquina e se foi. A memória, o ser virtual, agora encontra seu duplo e atravessa o espelho. Talvez ele não tenha mesmo morrido, mas virado, de fato, mais uma entidade no altar da mídia pop que sublima o mundo...