sábado, 24 de abril de 2010

Silêncio

Nesse vazio de gente que foi embora
De semente que não rompe a terra
De luzes sem brilho
Aguardo em silêncio e com mãos crispadas
Repouso minhas costas no abacateiro e espero uma folha cair
Ela cai
Mas você não chega
Seu perfume não perverte esse ar que agora cheira a nada
Sem você esse vermelho não faz sentido
A música é sem som
E a beleza dorme

sexta-feira, 16 de abril de 2010

... ainda continua

- Eia gato!... desse jeito você me assusta...

Luiz é dos angolanos que sofreram preconceito por serem brancos. Por conta disso teve que fugir de sua pátria com sua família, chegando ainda muito pequeno ao Brasil, mas logo conheceu seu destino quando seu pai foi levado pelas mãos resolutas da fatalidade. A única coisa que herdou do pai foram os seus livros de história e de literatura, e aos dezesseis anos teve que ir trabalhar para ajudar a mãe. Seus gestos precisos e elegantes, porém, revelavam alguma nobreza que parecia vir naturalmente de seus antepassados. Seus olhos quase verdes e a postura firme de um rapaz ccom seus vinte anos lhe confirmavam a elegância e uma sensualidade sutil, que só quem se aproximava de seu mundo é que conseguia realmente perceber sua intensidade.

- ... mais uma noite à caça, hein? Cuidado, porque qualquer dia desses é você que pode estar nesse prato com fritas.

Mathieu entendia os perigos da noite, mas preferia estar com as almas perdidas dos boêmios do Paradoxo, do que viver em função do medo. “Essas são criaturas da noite, assim como eu”, pensava entre um ronronar e outro, ao fim do frio filé com fritas. Entre essas criaturas estava Vitor, um jornalista que sempre aparecia por lá, logo cedo na noite, e que trazia algo de misterioso em seu olhar. Vitor parecia ter percebido a enfermidade que a beleza causa nos olhos dos mediocres.

***
II.
Vísceras

Os segundos pareciam respirar ofegantes, enquanto os minutos os fitavam com olhares maliciosos. O tempo desobrigava-se de si próprio e aquela manhã, quando a rua, os prédios e todo o espaço ia se dilatando à medida que o sol esquentava e diluía o frio hesitante de junho, seria uma manhã de segunda-feira como todas as outras, se não fosse a náusea que me cercava vertiginosamente.

Acordei inquieto, sentindo em meu corpo um suave descompasso. “O oxigênio arde no nariz”, tenho sempre essa sensação quando saio de casa, “todas essas pessoas... parecem deixar para trás o odor de suas almas atormentadas...”. Havia percebido o sorriso efêmero das coisas; havia percebido o sorriso dos céticos em meus lábios.
Enquanto meus passos ainda incertos cruzavam as ruas do bairro, pensava no planeta que sangrava mais uma vez em nome da cruz e do credo. Sangue que semeava os campos da Terra Santa. “... é, a história sempre me pareceu ter a morte como cúmplice...”. De repente, meu pensamento ganhou a textura líquida de uma música que lembrava água escorrendo na sarjeta. Foi quando uma visão, uma silhueta que se movia languidamente no outro lado da rua, cortou o fluxo dos meus delírios. Seu vestido estava deliciosamente colado ao corpo e o sol, que transpassava seu tecido, revelava o contorno de seu sexo no translúcido e entorpecia minha imaginação.
- Vitor... Ei!
Uma voz rouca e densa me arrancou do quase transe que me levava; ela parecia vir de algum lugar esquecido, mas diabolicamente confortável, uma sensação morna de conforto que despertava uma ânsia quase insuportável de alegria... alegorias em dia de Cinzas. O vento levou meu pensamento ao estado de voz:
- Ei Júlia. ‘Indo pra onde?
Júlia era quase um espectro. Tão lânguida e tão forte que... “eu poderia me perder no misterioso negro de seus olhos”, pensou. Na verdade já o havia feito, numa daquelas noites em que a embriagues nos põe em estado da graça. Nessas noites, destilávamos adjetivos em um suntuoso jogo de palavras e gestos. Mas na noite passada, houve algo além do acid jazz que se espalhava por entre as mesas e as pessoas.
- Vou fazer umas fotos naquela velha fábrica de tecidos... no litoral norte, lembra?
- Hum...
- E você, de novo com esse ar ateu? Aliás, combina com esse dia tão cinza. Pelo jeito você está indo pr’o jornal; aquela velha jaula de pensamentos incendiários.
- É... criar meios sutis para meias verdades. Para essa jaula nunca houve uma chave... “mesmo que a tivéssemos, não saberíamos ao certo como diferenciar o conveniente da liberdade, da liberdade conveniente”... preciso ir, estou atrasado de novo. Nos vemos no Paradoxo hoje à noite?
- Por que não?
O dia seguiu movendo suas pesadas engrenagens, em um movimento continuo das horas corroendo o tempo, o tempo corroendo a vida, a vida corroendo os sonhos...Já passava das seis quando a noite gentilmente envolveu a cidade, despertando em Vitor sinistros pensamentos que não ousara ter entre a difusa luz do dia; penetras em festa sem convite... “o que seria de Apolo se seu carro derrapasse no fim do dia? E o que seria do dia...?” esse pensamento se perdeu junto com o último cigarro da tarde.
Chegar em casa era dolorosamente confortável. Naquele apartamento, “um latifúndio que lhe cabe”, dizia Júlia, Vitor tinha consciência de como o amor, a angustia e tudo o que se resume à condição humana eram negociados pelas mãos tremulas da sorte. Podia quase sentir seu toque hesitante precipitando-se pela nuca. Era naquele espaço de três quartos, sala e todo o resto que fora herdado de seus pais, que ele podia ser dono da indizível certeza que o fazia acreditar, mais e mais, na ausência de sentido na mente perturbada das “pessoas de família”. “Eu sou uma pessoa de família”, concluiu com quase um desprezo, que na verdade era mais um espanto, daqueles que nos tomam a consciência.
***
III.
Vazio

- Qual é seu telefone?- pergunta quase irritada a secretária.

- Você já não o tem? – responde Ester, sinicamente.

“Esse é um daqueles dias em que toda aridez do cotidiano reivindica seu legado”, pensou Ester com um cigarro em uma mão e o comprovante de residência na outra. “Já não basta ter de saber exatamente quem sou, ainda tenho que comprovar onde estou? Merda!”. A voz seca e dissonante da secretária confirma sua existência e Ester desliga o telefone com uma sensação de que pelo menos algo em sua vida pode ser resolvido. Agora, só restava a vida.

Ester, conhecida como “a mulher de Vitor” é, de fato, uma psicanalista revoltada com o silêncio de “um velho que descola uma grana pra não falar nada!”, era o que ela sempre dizia sobre seu analista, o velho mestre de seu grupo de estudos sobre análises das pulsões contemporâneas. Ester tinha algo de inacabado, de uma beleza sólida e misteriosa. Ester era, sem dúvida, a instabilidade mais certa que poderia inspirar qualquer sensação de segurança na mais descrente das pessoas. Ester era o equivalente a uma suave digressão a uma realidade utópica ou, se preferir, um mórbido estado de segurança.

sábado, 10 de abril de 2010

... continuação

Mathieu, como passou a se chamar após ter visto esse nome nas páginas de um livro jogado ao chão, observava da janela, já saciado, os pássaros retirando-se rumo ao pôr do sol. Dona Maria surge entre seus devaneios que seguiam os pássaros, pegando e guardando o livro na estante do quarto de leitura. Nesse movimento deu para ver o título: “Idade da razão”.


O quarto de leitura é o espaço da casa mais intrigante. É dele que os bigodes/antenas de Mathieu percebem uma espécie de energia estática, um magnetismo presente, que vem, mais especificamente, daqueles objetos na parede que Dona Maria chama de “livros”. Foi por conta de um desses que “Chiquinho” (não sabe porque o chamavam assim) passou a se perceber como “Mathieu”. Não se importava com isso, na verdade. Apenas experimentava o som das palavras por curiosidade. Como um gato consegue ler é um dos acasos obscuros que surgem das comunicações silenciosas entre os seres.


Ao voltar a atenção para janela a luz difusa do lusco-fusco anunciava a noite, e quando a noite chega, em fim, as pupilas já não se contraem diante de uma luz dolorosamente limpa, e os telhados não queimam mais sob as patas. Por uma perspectiva, a cidade parece muito mais misteriosa e receptiva, emitindo seus sons e cheiros que vem, principalmente, de baixo das telhas. Uma telha quebrada era um apelo ao voyerismo, que Mathieu, timidamente, dispensava alguma atenção. Frestas, vidros, vãos entre os bares da cidade pareciam o lugar ideal para encontrar comida. Seu lugar favorito, no entanto, era a cozinha do “Paradoxo”, bar onde ele encontrava Luiz, um assistente de cozinha que, vez em quando, ia fumar um cigarro no depósito dos fundos. Foi assim que se conheceram, Mathieu chegando por entre as latas, Luiz fumando um cigarro e um prato com restos de filé com fritas entre eles.