Te desejo
Te venero
Te veneno
Mathieu, como passou a se chamar após ter visto esse nome nas páginas de um livro jogado ao chão, observava da janela, já saciado, os pássaros retirando-se rumo ao pôr do sol. Dona Maria surge entre seus devaneios que seguiam os pássaros, pegando e guardando o livro na estante do quarto de leitura. Nesse movimento deu para ver o título: “Idade da razão”.
O quarto de leitura é o espaço da casa mais intrigante. É dele que os bigodes/antenas de Mathieu percebem uma espécie de energia estática, um magnetismo presente, que vem, mais especificamente, daqueles objetos na parede que Dona Maria chama de “livros”. Foi por conta de um desses que “Chiquinho” (não sabe porque o chamavam assim) passou a se perceber como “Mathieu”. Não se importava com isso, na verdade. Apenas experimentava o som das palavras por curiosidade. Como um gato consegue ler é um dos acasos obscuros que surgem das comunicações silenciosas entre os seres.
Ao voltar a atenção para janela a luz difusa do lusco-fusco anunciava a noite, e quando a noite chega, em fim, as pupilas já não se contraem diante de uma luz dolorosamente limpa, e os telhados não queimam mais sob as patas. Por uma perspectiva, a cidade parece muito mais misteriosa e receptiva, emitindo seus sons e cheiros que vem, principalmente, de baixo das telhas. Uma telha quebrada era um apelo ao voyerismo, que Mathieu, timidamente, dispensava alguma atenção. Frestas, vidros, vãos entre os bares da cidade pareciam o lugar ideal para encontrar comida. Seu lugar favorito, no entanto, era a cozinha do “Paradoxo”, bar onde ele encontrava Luiz, um assistente de cozinha que, vez em quando, ia fumar um cigarro no depósito dos fundos. Foi assim que se conheceram, Mathieu chegando por entre as latas, Luiz fumando um cigarro e um prato com restos de filé com fritas entre eles.
Dona Maria se agacha e acende o pequeno fogareiro improvisado com uma lata de leite. O carvão inicia sua lenta transformação do preto para o vermelho e, depois de um tempo, branco.
A Carapeba arde sobre a grelha e começa a estalar, como se despedindo dessa realidade ou amaldiçoando seu estado que se ia no vento do abanador. Nome interessante para um objeto que justamente fazia o fogo arder.
No céu, o canto de um pássaro desconcentra o silêncio daquela tarde insólita... o tempo parecia redundante, em círculos, andando sobre o mesmo lugar e sem sair dele.
Sigo os olhos de Dona Maria que segue em direção ao céu, observando tristemente o opaco azul. Seus olhos pareciam duas ilhas estéreis, náufragas em um deserto negro.
Ao voltar os olhos para Carapeba, Dona Maria me percebe, "o que você está fazendo aí, menino?! Não tá vendo que você vai se queimar?!". Não respondo. Em vez disso, dou uma guinada no pescoço e começo a lamber meu dorso com uma plácida calma de quem não está interessado na pergunta. Mas, em nome da carapeba que agora já lança no ar um irresistível aroma, decido assumir uma postura mais sedutora e a olho de novo, com uma doçura no olhar, e vou me esfregar em suas pernas cobertas de varizes.
Sou a máscara que os monstros usam quando querem passar despercebidos.
O que observa criaturas copulando na chuva, à noite, com um leve rubor nos lábios.
Cria alturas
Cria agruras
Cria, e aturas
Minhas asas pesam quando ando entre as criaturas,
e é esse jogo estúpido que mais gosto de jogar: me perder em seu corpo suado
Divagar entre ínfimas distâncias, destilando adjetivos.
É assim que meço a distância: em versos,
e o tempo, em melancolia.
São de palavras as minhas asas
e quando as inflo, escuto ecos, sussurros...
Sinto a língua em meus ouvidos, morna, como seu sexo,
como o que sinto quando nem a cerveja mata minha sede.
Sou um disfarce, daqueles mais óbvios, que de tão óbvios,
são bons disfarces.
Sou a máscara que os monstros usam quando querem ter com as criaturas.
Sou alguma coisa entre o aqui e o depois.