quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Musa

Te vejo
Te desejo
Te venero
Te veneno

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

De passagem

Ele respira fundo, mas bem fundo mesmo, e, então, pula, fuuuvvv... Lembrava, durante seu vôo particular e intimo, muito intimo, da frase que colocara em um de seus vídeos: “O amor... é um salto sem redes”, o frio na barriga e bummm.
Livrara-se de todas as sentenças que o prendera durante todos aqueles anos, livrara-se de um ele que ele não suportava, mas que deixara crescer por conveniência e que agora ficara para trás. Agora era só ele, e só.

A água era salgada e deliciosamente fresca, e, estranhamente, lembrava os lábios dela no dia em que chorava seu amor, assim, abraçados, com os rostos colados, e felizes. O silêncio só o abraçava naquela ausência de peso, e exagero de cores. Seu coração agora batia mais calmo e foi numa espécie de lembrança uterina que ele se percebeu sorrindo, e foi assim que ele se percebeu indo. Pra onde, não importava. Gostou daquela luz que brilhava lá fora.

sábado, 20 de novembro de 2010

De súbito

Lembrou-se do seu pai. Lembrou-se da forma... da única forma que ele sabia expressar seu amor: com os pulsos cerrados direto no seu estômago.

O ventilador de teto sufocava seu choro com um zumbido monocórdico que começava a enlouquecê-lo. Resolveu acender um cigarro. Deu um longo trago. Terra quente sob os pés. Vento morno de verão. Expira... seriam anéis de fumaça, não fosse o vento.
Valery aparece por trás do segundo trago, explodindo em palavras. Imagens em sequência vertiginosa formavam-se em sua narrativa. Valery estava puta da vida.

sábado, 13 de novembro de 2010

Onde?

Minhas palavras se desfazem no ar seco dessa tarde ensolarada e quente, muito quente.
Minhas palavras dançam no ar, feito poeira, e seus sentidos já não fazem mais sentido.Tenho sentido o cheiro morno de sua ausência, mas só isso, no solstício de um ano qualquer, de mais uma série de meses enfileirados na linha tênue e dissonante de minhas memórias.

“Agora, o sol da tarde deita-se suavemente em suas varandas profundas; o incenso de Pot Pourri das pétalas caídas assombram a quietude”... Essas palavras ecoam em minha mente entorpecida pelo esquecimento, mas a paz bucólica da casa continua imutável. Então respiro o calor e expiro fumaça, anéis disformes que circundam a ausência de matéria. A ausência de Ma teria sido a última de suas inquietações, ou suas inquietações teriam sido a última de suas ausências. Não importa. O ar continuava morno.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Fragmento de um possível conto

D está deitado em sua cama, olhando para o teto e, pelo jeito que ele olha, não é difícil dizer que ele esteve assim a noite toda. A pálida luz da manhã, vazada pela cortina, se move delicadamente pelo quarto e vai ficando cada vez mais intensa, revelando um negro profundo embaixo dos seus olhos vermelhos.

D conta o tempo nas manchas que se formam em seu corpo, pelas marcas de sol, marcas de corte de estilete no braço, marcas vermelhas, pretas e brancas, que não estavam ali há alguns anos.


No lado esquerdo do guarda roupas só restava um grande vazio, que agora D contemplava à luz da manhã, sem perceber que o que o incomodava mesmo era um vazio ainda maior, que vinha de dentro de sua própria existência.

D então decide sair dali e vai até o quarto de sua filha de doze anos. Ela decidira realizar a labiríntica tarefa de costurar uma colcha, uma colcha de retalhos feitos das roupas da mãe. A primeira peça, que ela segura em uma das mãos, é um pedaço do vestido que a mãe usava na tarde que desaparecera: um pedaço de tecido estampado com delicadas violetas. Seus olhos parecem dois lagos negros e profundos prestes a transbordar. “Nunca vi tamanha dor em um rosto tão jovem”, pensou D, com espanto, ao ver a filha caída ao chão entre um confuso ninho de tecidos...

domingo, 11 de julho de 2010

Diálogos

A GAROTA: Tem pó de insenso no chão.
O RAPAZ: É, eu vi.
A GAROTA: Sabia que passei pano na casa?!
O RAPAZ: É?...
A GAROTA: Era!
O RAPAZ: Isso é um passado simples ou um presente perfeito?
A GAROTA: Isso é uma merda perfeita.
O AMIGO: vamos tomar um gim?
A GAROTA: tô nessa!
O RAPAZ: também.
O AMIGO: mas nós bem que poderíamos encontrar a Alice antes.
A GAROTA: que Alice?!
O RAPAZ: a do País da Maravilhas, sacou?
A GAROTA: hummmm... legal.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Como que por acaso

Eram oito horas de uma manhã meio cinzenta de segunda-feira. Apolônio estava remexendo os clipes em cima de sua mesa, próximo a janela daquele escritório no décimo andar de um prédio dos anos 70 em algum lugar no centro da cidade, já esboçando algum tipo de pensamento abstrato, quando se deu conta de que não era permitido pensar.

Olhou em volta como que pedindo desculpas, mas tudo que viu foi rostos sem expressão, invólucros de fluidos amnióticos contidos, debruçados sobre pequenos mundos estéreis. Era exatamente um desses mundos estéreis (tabelas, estatísticas, ações jurídicas) que ele tinha embaixo dos clipes. Isso o fez sentir um estranho formigamento nas pernas que foi logo chegando às pontas dos dedos e que já o mergulhava em um estado de dormência e desespero. Na verdade, o que ele sentia era a textura insólita de algum delírio, como se nada fosse mais palpável ou feito de qualquer tipo de matéria. Apolônio sentiu seu corpo cada vez mais submerso nesse estado etéreo, onde os vultos das pessoas se confundiam com o zumbido de uma mosca se afogando no copinho de café. Então, num impulso, pegou sua MontBlanc (que foi dada pelo chefe dias atrás como reconhecimento de sua dedicação e lealdade à empresa) e atravessou a mão esquerda, sentindo cada nervo, cada veia, cada camada de pele se dilacerando. A princípio, ficou deslumbrado com o roxo quase púrpura, vindo da mistura do sangue com a tinta azul da caneta; ficou também encantado com as diversas expressões que conseguiu criar nos rostos quase sem bocas, olhos e narizes, que eram os das pessoas do escritório. Correu por sobre as mesas em direção às janelas e passou a mão, já sem a MontBlanc, sobre elas, criando uma espécie de filtro vermelho na luz que inundava o ambiente.
A essa altura, depois de tantos grunhidos e sussurros por parte dos que trabalhavam ali, aparece o chefe, resto de carne no dente quase no fim da boca, suor que escorria pelo rosto e criava grandes rodelas embaixo do braço (a pesar do ar condicionado). Ele se aproxima de Apolônio como a polícia em manifestações públicas, olhar inquisidor. Apolônio para por um instante com os movimentos frenéticos que dominavam todo seu corpo e olha o chefe com profunda compaixão, como se tivesse entendido tudo, quem ele era quem era o outro, o que fazia ali, qual o sentido da vida e todo o propósito de sua existência. Olhou bem fixo nos olhos do chefe, olhou bem fixo para o vermelho do rubi no anel entre os dedos gordos do chefe, fez um paralelo lúdico entre os tons de vermelho, olhou de novo para o chefe (agora com olhar malicioso), lhe deu um beijo na boca e o jogou pela janela.

Tudo que se sabe depois disso é que, enquanto todos lamentavam pelo poodle que havia sido esmagado pela enorme massa corpórea do chefe, Apolônio seqüestrou a secretária e fugiu no carro blindado da empresa para algum lugar no Pantanal.

terça-feira, 25 de maio de 2010

O espelho oco

Lá na velha casa havia um espelho grande e de moldura trabalhada em madeira grossa, que ficava no canto da sala colonial, filtrado pela luz âmbar do cômodo. Esse era o objeto que ela mais gostava naquela velha casa, e era em frente a ele que ela passava grande parte de seu dia. Às vezes, tarde da noite, quando todos dormiam, ela se despia e ficava admirando seu corpo pálido como se o sol jamais o houvesse tocado, em contraste com o negro de seus olhos e cabelos. Ela tocava a imagem com suas mãos delicadas e jovens.

Em um desses dias, porém, ela teve a terrível notícia da morte de sua filha. “Complicações no parto”, disseram os médicos carniceiros do único hospital das redondezas, “não resistiu”. Essa notícia a deixou tão triste que não conseguiu ir ao espelho naquele dia. Duas manhãs seguintes, já conformada com a dor, ela levantou da cama. Era uma manhã de junho, chuvosa e fria. Ao chegar mais próximo do espelho, ela começou a vislumbrar a própria silhueta esbelta e bonita se formando na superfície daquele objeto tão onipresente e tão íntimo. Mas um calafrio tomou conta de seu corpo ao mesmo tempo que uma rajada de vento entrou em fúria pela janela da sala e derrubou o espelho no chão. Das profundezas de suas supertições ela pensa “Sete anos de azar...?”. Mas, para seu espanto, não havia no chão um caco de vidro sequer. Na verdade, não havia nada entre a moldura e o fundo de madeira. Confusa, ela passou a mão por sobre a superfície de madeira onde deveria estar o vidro, na tentativa de entender o que acontecera com o espelho, com seu reflexo.

Foi quando ela percebeu uma mão estranha sobre o fundo do espelho: as unhas estavam quebradiças, carcomidas e sujas, sustentadas por dedos tortos que compunham uma mão enrugada e cheia de manchas. Ela foi seguindo os olhos pelo braço até que olhou para o próprio corpo nu. Atônita e ainda mais confusa, ela percebe seus seios murchos e caídos por cima de uma barriga flácida e um corpo envelhecido.

Nesse momento, uma estranha luz ofusca aquele ambiente agora branco e cheio de camas, que ela percebe ao voltar o olhar para trás. O cheiro de urina velha contamina o ar e a faz sentir náuseas, uma vertigem furtiva que ela experimenta ao notar outras mulheres por ali, descabeladas e falando consigo mesmas. Uma enfermeira se aproxima e pega gentilmente seu braço esquerdo, a levando do canto do cômodo para sua cama, onde ela reconhece um álbum de recordações sobre uma mesinha ao lado. Ao folheá-lo ela se vê ao lado de um homem maduro, bonito, mas austero. “Meu marido”, pensou.

Em um segundo lembrou-se de como o conheceu, de seu casamento e da chaleira com água fervendo, que segurava nas mãos, anos depois de casarem. Ela o havia assassinado, despejando a água fervendo em um de seus ouvidos. “Ciúmes”, disse baixinho, “esse veneno que corre no sangue e aniquila a razão”. Na página seguinte ela vê a foto de um bebê, seguida de fotos desse bebê já grande e que se transformou em uma linda menina. “Minha filha?!”, suspira com voz trêmula. As últimas fotos são do casamento da filha com um rapaz jovem, também bonito e austero.

O álbum guarda, no final, uma linda fita de cetim púrpura. A cor cintila em suas mãos e transforma aquele branco insípido do cômodo em uma grande alegria. Teve vontade de fazer uma trança e amarrá-la com a fita. Com sua bela trança, saiu correndo pelo campo de margaridas, saltitando feliz entre o púrpura e o amarelo. Em seu pulso trazia uma pulseira de flores, que contrastava com a delicada pele de seu braço de menina. Ela corria alegre nesse mar amarelo, rumo ao pôr do sol...

sábado, 15 de maio de 2010

Sobre o tempo que nos separa

Tic, tac, tic, tac... sete horas. Uma leve descarga elétrica sobe por entre seus seios gloriosamente simétricos. De lá... do seu quarto... do fim do corredor... ela podia ouvir, sentir, o tilintar, o penetrar das chaves do lado de fora da porta da frente, quase como um eco. A chave entrando suavemente, tão íntima e tão certa na fechadura que parecia não haver nada mais perfeito. O tempo que isso levava pulsava em eternos segundos. Ela imaginava... não.. ela sentia, isso! ela sentia mesmo o girar da chave na fechadura tão lubrificada que facilitava o movimento de cada pino daquela engrenagem complexa e por isso perfeita, que hora trancava hora a libertava daquele universo também complexo que se confundia entre casa e casamento, sofrimento, destino, placidez. Cada pino que libertava a engrenagem da fechadura libertava a porta de sua moldura, libertava também os anseios e os impulsos elétricos que a deixavam levemente tonta. Sim... ela sentia o suntuoso toque da chave no interior secreto da porta, libertando suas trancas. Quase como um eco, quase eterno, quase livre, livre, livre mesmo que às custas de um inevitável arrombamento, mas não, não... tinha que ser suave, tinha que ser de direito à esquerdo, como a suave dança da chave. Pela permissividade da porta que, em fim, se abre.
Então Adamastor surge, rompendo o ar viciado da casa, com seus braços peludos, bigode português, óculos Ray ban e um cheiro de suor misturado com o que restava do desodorante. Era isso, exatamente esse cheiro que chegava primeiro ao seu quarto e lhe fazia os pelos ouriçarem. Era uma inexplicável ansiedade que lhe deixava as orelhas vermelhas, os lábios vermelhos e as entranhas pulsando descontroladamente.

sábado, 24 de abril de 2010

Silêncio

Nesse vazio de gente que foi embora
De semente que não rompe a terra
De luzes sem brilho
Aguardo em silêncio e com mãos crispadas
Repouso minhas costas no abacateiro e espero uma folha cair
Ela cai
Mas você não chega
Seu perfume não perverte esse ar que agora cheira a nada
Sem você esse vermelho não faz sentido
A música é sem som
E a beleza dorme

sexta-feira, 16 de abril de 2010

... ainda continua

- Eia gato!... desse jeito você me assusta...

Luiz é dos angolanos que sofreram preconceito por serem brancos. Por conta disso teve que fugir de sua pátria com sua família, chegando ainda muito pequeno ao Brasil, mas logo conheceu seu destino quando seu pai foi levado pelas mãos resolutas da fatalidade. A única coisa que herdou do pai foram os seus livros de história e de literatura, e aos dezesseis anos teve que ir trabalhar para ajudar a mãe. Seus gestos precisos e elegantes, porém, revelavam alguma nobreza que parecia vir naturalmente de seus antepassados. Seus olhos quase verdes e a postura firme de um rapaz ccom seus vinte anos lhe confirmavam a elegância e uma sensualidade sutil, que só quem se aproximava de seu mundo é que conseguia realmente perceber sua intensidade.

- ... mais uma noite à caça, hein? Cuidado, porque qualquer dia desses é você que pode estar nesse prato com fritas.

Mathieu entendia os perigos da noite, mas preferia estar com as almas perdidas dos boêmios do Paradoxo, do que viver em função do medo. “Essas são criaturas da noite, assim como eu”, pensava entre um ronronar e outro, ao fim do frio filé com fritas. Entre essas criaturas estava Vitor, um jornalista que sempre aparecia por lá, logo cedo na noite, e que trazia algo de misterioso em seu olhar. Vitor parecia ter percebido a enfermidade que a beleza causa nos olhos dos mediocres.

***
II.
Vísceras

Os segundos pareciam respirar ofegantes, enquanto os minutos os fitavam com olhares maliciosos. O tempo desobrigava-se de si próprio e aquela manhã, quando a rua, os prédios e todo o espaço ia se dilatando à medida que o sol esquentava e diluía o frio hesitante de junho, seria uma manhã de segunda-feira como todas as outras, se não fosse a náusea que me cercava vertiginosamente.

Acordei inquieto, sentindo em meu corpo um suave descompasso. “O oxigênio arde no nariz”, tenho sempre essa sensação quando saio de casa, “todas essas pessoas... parecem deixar para trás o odor de suas almas atormentadas...”. Havia percebido o sorriso efêmero das coisas; havia percebido o sorriso dos céticos em meus lábios.
Enquanto meus passos ainda incertos cruzavam as ruas do bairro, pensava no planeta que sangrava mais uma vez em nome da cruz e do credo. Sangue que semeava os campos da Terra Santa. “... é, a história sempre me pareceu ter a morte como cúmplice...”. De repente, meu pensamento ganhou a textura líquida de uma música que lembrava água escorrendo na sarjeta. Foi quando uma visão, uma silhueta que se movia languidamente no outro lado da rua, cortou o fluxo dos meus delírios. Seu vestido estava deliciosamente colado ao corpo e o sol, que transpassava seu tecido, revelava o contorno de seu sexo no translúcido e entorpecia minha imaginação.
- Vitor... Ei!
Uma voz rouca e densa me arrancou do quase transe que me levava; ela parecia vir de algum lugar esquecido, mas diabolicamente confortável, uma sensação morna de conforto que despertava uma ânsia quase insuportável de alegria... alegorias em dia de Cinzas. O vento levou meu pensamento ao estado de voz:
- Ei Júlia. ‘Indo pra onde?
Júlia era quase um espectro. Tão lânguida e tão forte que... “eu poderia me perder no misterioso negro de seus olhos”, pensou. Na verdade já o havia feito, numa daquelas noites em que a embriagues nos põe em estado da graça. Nessas noites, destilávamos adjetivos em um suntuoso jogo de palavras e gestos. Mas na noite passada, houve algo além do acid jazz que se espalhava por entre as mesas e as pessoas.
- Vou fazer umas fotos naquela velha fábrica de tecidos... no litoral norte, lembra?
- Hum...
- E você, de novo com esse ar ateu? Aliás, combina com esse dia tão cinza. Pelo jeito você está indo pr’o jornal; aquela velha jaula de pensamentos incendiários.
- É... criar meios sutis para meias verdades. Para essa jaula nunca houve uma chave... “mesmo que a tivéssemos, não saberíamos ao certo como diferenciar o conveniente da liberdade, da liberdade conveniente”... preciso ir, estou atrasado de novo. Nos vemos no Paradoxo hoje à noite?
- Por que não?
O dia seguiu movendo suas pesadas engrenagens, em um movimento continuo das horas corroendo o tempo, o tempo corroendo a vida, a vida corroendo os sonhos...Já passava das seis quando a noite gentilmente envolveu a cidade, despertando em Vitor sinistros pensamentos que não ousara ter entre a difusa luz do dia; penetras em festa sem convite... “o que seria de Apolo se seu carro derrapasse no fim do dia? E o que seria do dia...?” esse pensamento se perdeu junto com o último cigarro da tarde.
Chegar em casa era dolorosamente confortável. Naquele apartamento, “um latifúndio que lhe cabe”, dizia Júlia, Vitor tinha consciência de como o amor, a angustia e tudo o que se resume à condição humana eram negociados pelas mãos tremulas da sorte. Podia quase sentir seu toque hesitante precipitando-se pela nuca. Era naquele espaço de três quartos, sala e todo o resto que fora herdado de seus pais, que ele podia ser dono da indizível certeza que o fazia acreditar, mais e mais, na ausência de sentido na mente perturbada das “pessoas de família”. “Eu sou uma pessoa de família”, concluiu com quase um desprezo, que na verdade era mais um espanto, daqueles que nos tomam a consciência.
***
III.
Vazio

- Qual é seu telefone?- pergunta quase irritada a secretária.

- Você já não o tem? – responde Ester, sinicamente.

“Esse é um daqueles dias em que toda aridez do cotidiano reivindica seu legado”, pensou Ester com um cigarro em uma mão e o comprovante de residência na outra. “Já não basta ter de saber exatamente quem sou, ainda tenho que comprovar onde estou? Merda!”. A voz seca e dissonante da secretária confirma sua existência e Ester desliga o telefone com uma sensação de que pelo menos algo em sua vida pode ser resolvido. Agora, só restava a vida.

Ester, conhecida como “a mulher de Vitor” é, de fato, uma psicanalista revoltada com o silêncio de “um velho que descola uma grana pra não falar nada!”, era o que ela sempre dizia sobre seu analista, o velho mestre de seu grupo de estudos sobre análises das pulsões contemporâneas. Ester tinha algo de inacabado, de uma beleza sólida e misteriosa. Ester era, sem dúvida, a instabilidade mais certa que poderia inspirar qualquer sensação de segurança na mais descrente das pessoas. Ester era o equivalente a uma suave digressão a uma realidade utópica ou, se preferir, um mórbido estado de segurança.

sábado, 10 de abril de 2010

... continuação

Mathieu, como passou a se chamar após ter visto esse nome nas páginas de um livro jogado ao chão, observava da janela, já saciado, os pássaros retirando-se rumo ao pôr do sol. Dona Maria surge entre seus devaneios que seguiam os pássaros, pegando e guardando o livro na estante do quarto de leitura. Nesse movimento deu para ver o título: “Idade da razão”.


O quarto de leitura é o espaço da casa mais intrigante. É dele que os bigodes/antenas de Mathieu percebem uma espécie de energia estática, um magnetismo presente, que vem, mais especificamente, daqueles objetos na parede que Dona Maria chama de “livros”. Foi por conta de um desses que “Chiquinho” (não sabe porque o chamavam assim) passou a se perceber como “Mathieu”. Não se importava com isso, na verdade. Apenas experimentava o som das palavras por curiosidade. Como um gato consegue ler é um dos acasos obscuros que surgem das comunicações silenciosas entre os seres.


Ao voltar a atenção para janela a luz difusa do lusco-fusco anunciava a noite, e quando a noite chega, em fim, as pupilas já não se contraem diante de uma luz dolorosamente limpa, e os telhados não queimam mais sob as patas. Por uma perspectiva, a cidade parece muito mais misteriosa e receptiva, emitindo seus sons e cheiros que vem, principalmente, de baixo das telhas. Uma telha quebrada era um apelo ao voyerismo, que Mathieu, timidamente, dispensava alguma atenção. Frestas, vidros, vãos entre os bares da cidade pareciam o lugar ideal para encontrar comida. Seu lugar favorito, no entanto, era a cozinha do “Paradoxo”, bar onde ele encontrava Luiz, um assistente de cozinha que, vez em quando, ia fumar um cigarro no depósito dos fundos. Foi assim que se conheceram, Mathieu chegando por entre as latas, Luiz fumando um cigarro e um prato com restos de filé com fritas entre eles.

quarta-feira, 31 de março de 2010

Urbanus

Vermelho... vermelho... vermelho... e espaços de silêncio. A luz continua, intermitente, vermelho... vermelho... vermelho. Lá fora as buzinas e as vozes entram em um acorde sofisticado na noite fria e sempre, sempre acolhedora no intimo de seus mistérios. Meus mistérios nada tem a ver com isso, mas com o vermelho dos meus olhos cansados. Meus dedos fatigados seguram mais um cigarro que alterno entre um sopro ou outro no trompete. Jazz... devaneios lúdicos e roucos dos meus mistérios, das minhas súplicas para que esse céu se quebre e dele surja apenas uma leve brisa que embale minhas súplicas, minhas expectativas estéreis, meus dias de nada, minhas doses oníricas contra a razão.
Vermelho... nada...vermelho... nada... vermelho... na... da.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Funeral Blues (W.H. Auden) - Fragmento

Parem todos os relógios e cortem os telefones
Evitem o latir do cachorro com um osso suculento
Silenciem os pianos e, com tambores surdos, tragam o caixão
Deixem as carpideiras virem

[...]

As estrelas não são desejadas agora,
apaguem todas, empacotem a lua e
desmontem o sol
Deságuem o oceano e varram as árvores
Pois agora nada mais servirá

sábado, 6 de março de 2010

I. Vácuo

Dona Maria se agacha e acende o pequeno fogareiro improvisado com uma lata de leite. O carvão inicia sua lenta transformação do preto para o vermelho e, depois de um tempo, branco.

A Carapeba arde sobre a grelha e começa a estalar, como se despedindo dessa realidade ou amaldiçoando seu estado que se ia no vento do abanador. Nome interessante para um objeto que justamente fazia o fogo arder.

No céu, o canto de um pássaro desconcentra o silêncio daquela tarde insólita... o tempo parecia redundante, em círculos, andando sobre o mesmo lugar e sem sair dele.

Sigo os olhos de Dona Maria que segue em direção ao céu, observando tristemente o opaco azul. Seus olhos pareciam duas ilhas estéreis, náufragas em um deserto negro.

Ao voltar os olhos para Carapeba, Dona Maria me percebe, "o que você está fazendo aí, menino?! Não tá vendo que você vai se queimar?!". Não respondo. Em vez disso, dou uma guinada no pescoço e começo a lamber meu dorso com uma plácida calma de quem não está interessado na pergunta. Mas, em nome da carapeba que agora já lança no ar um irresistível aroma, decido assumir uma postura mais sedutora e a olho de novo, com uma doçura no olhar, e vou me esfregar em suas pernas cobertas de varizes.

terça-feira, 2 de março de 2010

Quem sou eu?

Sou a máscara que os monstros usam quando querem passar despercebidos.

O que observa criaturas copulando na chuva, à noite, com um leve rubor nos lábios.

Cria alturas

Cria agruras

Cria, e aturas

Minhas asas pesam quando ando entre as criaturas,

e é esse jogo estúpido que mais gosto de jogar: me perder em seu corpo suado

Divagar entre ínfimas distâncias, destilando adjetivos.

É assim que meço a distância: em versos,

e o tempo, em melancolia.

São de palavras as minhas asas

e quando as inflo, escuto ecos, sussurros...

Sinto a língua em meus ouvidos, morna, como seu sexo,

como o que sinto quando nem a cerveja mata minha sede.

Sou um disfarce, daqueles mais óbvios, que de tão óbvios,

são bons disfarces.

Sou a máscara que os monstros usam quando querem ter com as criaturas.

Sou alguma coisa entre o aqui e o depois.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

A carne e a culpa

Nesse abismo sórdido que nos separa não há senão o vento pestilento da desconfiança.
Nesse obscuro e profundo buraco da existência ainda há onde se apoiar os pés e tentar uma saída, mas nada é à toa e nem de feitura fácil. Não, não... o destino é perverso e exigente. Para se ter paz é preciso matar a expectativa de se ter paz, com duas gramas de sal e uma boa dose de comodismo. Daí é viver os dias letárgicos do por vir.
É aí, nessa letargia dos dias dolorosos de verão, que a carne se pronuncia. É exatamente aí que a carne arde sobre os ossos e cheira a carne viva e úmida. Cheiro que lateja até mesmo velhos músculos cansados. A carne tem fome de carne e não se importa se tiver de consumir a si própria, porque a carne só se importa com a carne.
Então, vem a culpa com seu odor que a antecede. A culpa seduz com os olhos e quando menos se espera já estamos em seus braços ou entre suas pernas. A culpa é doce e fácil de se acostumar, basta dár-lhe alguma atenção. Mas a culpa também é clichê e se esgota assim que a vivemos com intensidade, porque a culpa... ah... a culpa... só deseja cosciências virgens e pesadas. Após a leveza da confissão, quando se acostuma com ela, ela nos deixa e se vai como um malandro foge do casamento. Esse é o pior estágio: quando nem a culpa nos ampara.
Alguém viu minha culpa por aí?