terça-feira, 22 de junho de 2010

Como que por acaso

Eram oito horas de uma manhã meio cinzenta de segunda-feira. Apolônio estava remexendo os clipes em cima de sua mesa, próximo a janela daquele escritório no décimo andar de um prédio dos anos 70 em algum lugar no centro da cidade, já esboçando algum tipo de pensamento abstrato, quando se deu conta de que não era permitido pensar.

Olhou em volta como que pedindo desculpas, mas tudo que viu foi rostos sem expressão, invólucros de fluidos amnióticos contidos, debruçados sobre pequenos mundos estéreis. Era exatamente um desses mundos estéreis (tabelas, estatísticas, ações jurídicas) que ele tinha embaixo dos clipes. Isso o fez sentir um estranho formigamento nas pernas que foi logo chegando às pontas dos dedos e que já o mergulhava em um estado de dormência e desespero. Na verdade, o que ele sentia era a textura insólita de algum delírio, como se nada fosse mais palpável ou feito de qualquer tipo de matéria. Apolônio sentiu seu corpo cada vez mais submerso nesse estado etéreo, onde os vultos das pessoas se confundiam com o zumbido de uma mosca se afogando no copinho de café. Então, num impulso, pegou sua MontBlanc (que foi dada pelo chefe dias atrás como reconhecimento de sua dedicação e lealdade à empresa) e atravessou a mão esquerda, sentindo cada nervo, cada veia, cada camada de pele se dilacerando. A princípio, ficou deslumbrado com o roxo quase púrpura, vindo da mistura do sangue com a tinta azul da caneta; ficou também encantado com as diversas expressões que conseguiu criar nos rostos quase sem bocas, olhos e narizes, que eram os das pessoas do escritório. Correu por sobre as mesas em direção às janelas e passou a mão, já sem a MontBlanc, sobre elas, criando uma espécie de filtro vermelho na luz que inundava o ambiente.
A essa altura, depois de tantos grunhidos e sussurros por parte dos que trabalhavam ali, aparece o chefe, resto de carne no dente quase no fim da boca, suor que escorria pelo rosto e criava grandes rodelas embaixo do braço (a pesar do ar condicionado). Ele se aproxima de Apolônio como a polícia em manifestações públicas, olhar inquisidor. Apolônio para por um instante com os movimentos frenéticos que dominavam todo seu corpo e olha o chefe com profunda compaixão, como se tivesse entendido tudo, quem ele era quem era o outro, o que fazia ali, qual o sentido da vida e todo o propósito de sua existência. Olhou bem fixo nos olhos do chefe, olhou bem fixo para o vermelho do rubi no anel entre os dedos gordos do chefe, fez um paralelo lúdico entre os tons de vermelho, olhou de novo para o chefe (agora com olhar malicioso), lhe deu um beijo na boca e o jogou pela janela.

Tudo que se sabe depois disso é que, enquanto todos lamentavam pelo poodle que havia sido esmagado pela enorme massa corpórea do chefe, Apolônio seqüestrou a secretária e fugiu no carro blindado da empresa para algum lugar no Pantanal.