quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

A carne e a culpa

Nesse abismo sórdido que nos separa não há senão o vento pestilento da desconfiança.
Nesse obscuro e profundo buraco da existência ainda há onde se apoiar os pés e tentar uma saída, mas nada é à toa e nem de feitura fácil. Não, não... o destino é perverso e exigente. Para se ter paz é preciso matar a expectativa de se ter paz, com duas gramas de sal e uma boa dose de comodismo. Daí é viver os dias letárgicos do por vir.
É aí, nessa letargia dos dias dolorosos de verão, que a carne se pronuncia. É exatamente aí que a carne arde sobre os ossos e cheira a carne viva e úmida. Cheiro que lateja até mesmo velhos músculos cansados. A carne tem fome de carne e não se importa se tiver de consumir a si própria, porque a carne só se importa com a carne.
Então, vem a culpa com seu odor que a antecede. A culpa seduz com os olhos e quando menos se espera já estamos em seus braços ou entre suas pernas. A culpa é doce e fácil de se acostumar, basta dár-lhe alguma atenção. Mas a culpa também é clichê e se esgota assim que a vivemos com intensidade, porque a culpa... ah... a culpa... só deseja cosciências virgens e pesadas. Após a leveza da confissão, quando se acostuma com ela, ela nos deixa e se vai como um malandro foge do casamento. Esse é o pior estágio: quando nem a culpa nos ampara.
Alguém viu minha culpa por aí?

4 comentários:

Nana Gomes disse...

O termo culpa sempre remete à psicologia freudiana. É o sentimento de culpa que molda e delimita a sociedade. A sensação de desamparo por não se sentir culpado é comum e, de certa forma, coercitiva. Contudo, o conformismo causado pela normose da sociedade contemporânea tem como consequência o esgotamento da culpa em si mesma...
Logo, entra em discussão outro termo: LIBERDADE. Seguindo, ainda, o pensamento freudiano, o esgotamento da culpa pode causar danos irreversíveis à concepção de liberdade... Ser liberto é ter a consciência de si mesmo, de seus desejos, de seus atos, de seus amores e de seus rancores, além de ter a consciência dos limites e das capacidades do outro.
Assim, se o sentimento de culpa torna-se autodestrutivo, sua liberdade também é destruída. E, se a falta dele não prejudica a outrem, dane-se o que diz Freud... Deixa a carne se pronunciar, arder e consumir, ainda que seja em si mesma.

Dayana Mello disse...

A saída deste abismo realmente é dolorosa... penso que para encontrarmos a paz precisamos sempre nos permitir, nos dar mais uma chance, afinal a vida é guiada por nossas tentativas e não significa que temos que acertar de princípio, tampouco camuflarmos nossa esperança de paz. Somos vermes perversos? Somos. E quanto a nossa consciência? Ela pesa? Isso pode parecer óbvio, mas lembre-se de que, se chegamos ao estágio de nos indagarmos sobre nossa culpa, ou a falta dela, é porque estamos cientes de que a temos, de que ela nos sonda. É verdade que por meio das difíceis tentativas percebemos nossa fragilidade e insegurança. Percebemo-nos seres materialistas. Dói muito tentar viver, sofremos demais. Mas essa dor nós somos capazes de superá-la, não é verdade? Portanto, se assim o é, então eis a nossa dignidade, eis a nossa culpa. Graças a ela podemos dizer: ainda temos uma chance.

Marcus V. disse...

A culpa, quando e se encontrada, não passará mais do que uma culpa velha e já acomodada a um estado de dormência. Como disse, nem a culpa pode mais me amparar, ainda que alguém tente encontrá-la, sem dúvida, sem propósito algum.

Amanda Gomes disse...

Nossa! Primeira vez que vejo você falar na 1ª pessoa. Cadê o narrador? Onde está o eu-lírico?