quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Olhos de Clarice

A mancha deixada pelo calor de sua mão ainda estava no vidro da janela, quando o ônibus já se afastava. Isabella era agora apenas um borrão no horizonte. Mais tarde se lembraria dessa imagem com detalhes imprecisos: não lembraria ao certo se seu perfume era jasmim ou lavanda, nem se seu vestido deixava seus ombros nus. Ela havia sussurrado “amor” ou apenas “dor”? A única coisa que lembrava mesmo era dos olhos dela, do jeito como olhava e falava com seus olhos.

Também não sabia, naquele momento, para onde estava realmente indo. Pegou o primeiro ônibus para o sul, para o mais distante sul que seu dinheiro poderia pagar. E foi, levando consigo seu livro favorito, uma câmera fotográfica e algumas roupas. Precisava fazer isso, precisava estancar aquele amor que o destruía por dentro e que, sabia, destruiria muito mais se ficasse. Lamentaria, algumas semanas depois, a estupidez de tal pensamento ao perceber como estava errado; que um amor como aquele não se acaba nem nos deixa esquecer o que quer que seja.

Em todo caso, ele se foi. Poderia ter pego um avião, mas seria um distanciamento demasiado rápido e temia que não houvesse tempo para seu espírito perceber que partira. Lembrou-se que havia lido em algum lugar que, em uma expedição no Peru (talvez fosse em outro canto), os nativos paravam de quando em vez na subida da montanha. Ao serem interrogados por um viajante apressado, eles responderam: “se subirmos muito rápido, nossos espíritos não terão tempo de nos acompanhar e se perderão”. Foi assim que ele decidiu ir à rodoviária e partir, como partiria muitas vezes depois de um lugar para outro. Sem destino, sem espírito, sem fim. Mas, naquele momento, era preciso ir se desfazendo daquilo, dele mesmo, aos poucos. Uma morte lenta e dolorosa, mas uma morte digna de seu amor. Se foi covarde, isso só o tempo e os motivos que contarei poderão provar o contrário.
Essa é a história de D.

Um comentário:

Amanda Gomes disse...

Que texto incrível! Quantos símbolos... O termo mancha sugere uma lembrança que pode ser apagada por D. Entretanto, a narrativa me leva a acreditar que ele ainda não esteja preparado para apagá-la. E, talvez, nunca esteja. A lembrança do sussurro de Isabella revela muito sobre o sentimento de D. A dúvida em relação às palavras dela provavelmente surgiram com o distanciamento. Amor aparece antes de dor na história, revelando que D. ama, mas sente-se culpado por algo que não consegui perceber no texto. Talvez por isso ele resolva se afastar, quem sabe, voltar para casa? Em todo caso, o narrador revela em seu discurso a certeza do amor que D. dedica a Isabella no momento que fala sobre corpo e espírito. D. tem seus motivos para ir, contudo, a dor da partida é comparada com a própria morte... "Uma morte lenta e dolorosa". E ele se vai. Certamente não vai tentando se encontrar. O narrador deixa indícios de que ele já encontrou o que buscava e a ideia de que continuaria indo embora não demonstra intenção de busca, mas de perda. A história de D. tem como título "Olhos de Clarice" e , no começo da narrativa, descreve o olhar vivazmente autônomo da mulher amada pelo protagonista... Coisa de Machado.

Beijos.