terça-feira, 25 de maio de 2010

O espelho oco

Lá na velha casa havia um espelho grande e de moldura trabalhada em madeira grossa, que ficava no canto da sala colonial, filtrado pela luz âmbar do cômodo. Esse era o objeto que ela mais gostava naquela velha casa, e era em frente a ele que ela passava grande parte de seu dia. Às vezes, tarde da noite, quando todos dormiam, ela se despia e ficava admirando seu corpo pálido como se o sol jamais o houvesse tocado, em contraste com o negro de seus olhos e cabelos. Ela tocava a imagem com suas mãos delicadas e jovens.

Em um desses dias, porém, ela teve a terrível notícia da morte de sua filha. “Complicações no parto”, disseram os médicos carniceiros do único hospital das redondezas, “não resistiu”. Essa notícia a deixou tão triste que não conseguiu ir ao espelho naquele dia. Duas manhãs seguintes, já conformada com a dor, ela levantou da cama. Era uma manhã de junho, chuvosa e fria. Ao chegar mais próximo do espelho, ela começou a vislumbrar a própria silhueta esbelta e bonita se formando na superfície daquele objeto tão onipresente e tão íntimo. Mas um calafrio tomou conta de seu corpo ao mesmo tempo que uma rajada de vento entrou em fúria pela janela da sala e derrubou o espelho no chão. Das profundezas de suas supertições ela pensa “Sete anos de azar...?”. Mas, para seu espanto, não havia no chão um caco de vidro sequer. Na verdade, não havia nada entre a moldura e o fundo de madeira. Confusa, ela passou a mão por sobre a superfície de madeira onde deveria estar o vidro, na tentativa de entender o que acontecera com o espelho, com seu reflexo.

Foi quando ela percebeu uma mão estranha sobre o fundo do espelho: as unhas estavam quebradiças, carcomidas e sujas, sustentadas por dedos tortos que compunham uma mão enrugada e cheia de manchas. Ela foi seguindo os olhos pelo braço até que olhou para o próprio corpo nu. Atônita e ainda mais confusa, ela percebe seus seios murchos e caídos por cima de uma barriga flácida e um corpo envelhecido.

Nesse momento, uma estranha luz ofusca aquele ambiente agora branco e cheio de camas, que ela percebe ao voltar o olhar para trás. O cheiro de urina velha contamina o ar e a faz sentir náuseas, uma vertigem furtiva que ela experimenta ao notar outras mulheres por ali, descabeladas e falando consigo mesmas. Uma enfermeira se aproxima e pega gentilmente seu braço esquerdo, a levando do canto do cômodo para sua cama, onde ela reconhece um álbum de recordações sobre uma mesinha ao lado. Ao folheá-lo ela se vê ao lado de um homem maduro, bonito, mas austero. “Meu marido”, pensou.

Em um segundo lembrou-se de como o conheceu, de seu casamento e da chaleira com água fervendo, que segurava nas mãos, anos depois de casarem. Ela o havia assassinado, despejando a água fervendo em um de seus ouvidos. “Ciúmes”, disse baixinho, “esse veneno que corre no sangue e aniquila a razão”. Na página seguinte ela vê a foto de um bebê, seguida de fotos desse bebê já grande e que se transformou em uma linda menina. “Minha filha?!”, suspira com voz trêmula. As últimas fotos são do casamento da filha com um rapaz jovem, também bonito e austero.

O álbum guarda, no final, uma linda fita de cetim púrpura. A cor cintila em suas mãos e transforma aquele branco insípido do cômodo em uma grande alegria. Teve vontade de fazer uma trança e amarrá-la com a fita. Com sua bela trança, saiu correndo pelo campo de margaridas, saltitando feliz entre o púrpura e o amarelo. Em seu pulso trazia uma pulseira de flores, que contrastava com a delicada pele de seu braço de menina. Ela corria alegre nesse mar amarelo, rumo ao pôr do sol...

Um comentário:

Amanda Gomes disse...

Esse ainda é um dos contos mais fortes que já li...