sábado, 6 de março de 2010

I. Vácuo

Dona Maria se agacha e acende o pequeno fogareiro improvisado com uma lata de leite. O carvão inicia sua lenta transformação do preto para o vermelho e, depois de um tempo, branco.

A Carapeba arde sobre a grelha e começa a estalar, como se despedindo dessa realidade ou amaldiçoando seu estado que se ia no vento do abanador. Nome interessante para um objeto que justamente fazia o fogo arder.

No céu, o canto de um pássaro desconcentra o silêncio daquela tarde insólita... o tempo parecia redundante, em círculos, andando sobre o mesmo lugar e sem sair dele.

Sigo os olhos de Dona Maria que segue em direção ao céu, observando tristemente o opaco azul. Seus olhos pareciam duas ilhas estéreis, náufragas em um deserto negro.

Ao voltar os olhos para Carapeba, Dona Maria me percebe, "o que você está fazendo aí, menino?! Não tá vendo que você vai se queimar?!". Não respondo. Em vez disso, dou uma guinada no pescoço e começo a lamber meu dorso com uma plácida calma de quem não está interessado na pergunta. Mas, em nome da carapeba que agora já lança no ar um irresistível aroma, decido assumir uma postura mais sedutora e a olho de novo, com uma doçura no olhar, e vou me esfregar em suas pernas cobertas de varizes.

4 comentários:

Amanda Gomes disse...

Nomes de personagens são bem sugestivos... Você inicia sua narrativa com o nome mais comum que conheço. Talvez, por isso, tenha me levado a imaginar uma mulher comum e real (verossimilhança?).
Duas palavras me chamam bastante atenção: TEMPO e ESTADO. Apesar da descrição cronológica dos fatos em sua narrativa, que por sinal não é extensa, sinto-me envelhecida e fatigada, como o carvão. Essa percepção psicológica da personagem e, por conseguinte, do leitor, provém da redundância do tempo e, possivelmente, da própria vida de Dona Maria.
O olhar... Ah, o olhar. Depois de Machado o olhar ganhou outro sentido(?). Sempre acreditei que nossos olhos revelam nossa alma... Chegamos, então, à causa de tanta fadiga e de tanta redundância: a TRISTEZA. As "ilhas estéreis" possuem um quê de ausência de amor. Contudo, "náufragas em um deserto negro" revelam a verdade... Um amor, provavelmente, consumido pelo tempo.
Por fim, a imagem de um gato. Quem sabe, sua única companhia... Gatos me trazem uma sensação de independência, na verdade, de solidão, de repente, alcançada por tamanha independência e rigidez no coração.

Bela narrativa! Não esperava menos de você.
Abraços...

Marcus V. disse...

Também não esperava menos de você em fazer uma interpretação tão interessante.
Sim... tristeza e solidão, mas também consolo, adaptação, ou, quem sabe, a consciência de uma realidade que tem em sua natureza o que é de fato, real: a crueza do ser e das coisas.
O gato é, de fato, o grande protagonista dessa narrativa em construção. Ele irá percorrer as ruas, à noite, e sondá-las, assim como as criaturas que as habitam, com sua visão existencialista.

Amanda Gomes disse...

EXISTENCIALISTA. Será que eu realmente existo? Será que sou, ou sou na medida em que o outro me permite ser em sua vida? Você realmente é, ou é na medida em que eu o percebo?

Deve ser chato ser cético, né?

Abraços...

Amanda Gomes disse...

Você deveria continuar... Estou esperando as histórias que Mathieu vai ajudar a desenvolver há mais de um ano...